Na passagem do 40º Aniversário da Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos, associamo-nos a essa comemoração e à reivindicação de que a Assembleia da República reconheça, finalmente, a importância histórica dessa iniciativa unitária da resistência antifascista. O testemunho de Catalina Pestana que publicamos evoca um significativo fragmento das acções de solidariedade desenvolvidas pela CNSPP, os campos de férias para os filhos dos presos políticos nas masmorras do salazarismo. Cada testemunho que recorde a natureza do regime fascista é hoje um importante elemento de combate contra a sistemática campanha de reescrita da história, de branqueamento do fascismo, de apologia e homenagem (como recentemente sucedeu com Spínola) aos inimigos do Portugal de Abril.
Em 1969 o regime agonizava. O país depressa percebera que a «Primavera marcelista» fora tão fugaz como os Verões de S. Martinho.
A PIDE, polícia política do regime, mudou de nome e passou a chamar-se Direcção-Geral de Segurança. Mas os seus métodos e objectivos não mudaram.
Os presos políticos não eram numericamente muitos, mas as penas a que tinham sido condenados por tribunais de excepção (os Tribunais Plenários) eram sujeitas a «medidas de segurança», tornando a dimensão das penas completamente aleatória.
O direito de associação era proibido: só as associações pias ou com fins humanitárias eram toleradas.
No dia 31 de Dezembro de 1969 um grupo de homens e mulheres, católicos e comunistas, habituados a disfarçar as suas acções cívicas para tourearem o poder totalitário, fez chegar a um departamento estatal a informação de que tinham fundado a Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos.
A palavra-chave, que servia de salvo-conduto, era «Socorro».
O início da sua actividade, que duraria até ao final do regime, acabou agora de fazer 40 anos.
Não fiz parte do grupo que assumiu publicamente a sua fundação. Esses nomes, poucos, eram de pessoas que o regime odiava mas temia ou respeitava: Sophia de Mello Breyner, Nuno Teotónio Pereira, Conceição Borges Coutinho, entre outros.
A acção era diversificada, de âmbito nacional e cívico-política.
Nesse tempo, o meu grupo vivia num comunitário situado no «Reino Livre da Cruz Quebrada». Éramos muitos e produzíamos, num serão comprido, os boletins da Comissão – que nos chegavam por mãos «amigas» em folhas policopiadas.
A actividade cresceu. E já no princípio dos anos setenta o grupo decidiu fazer, no Verão, campos de férias para os filhos dos presos políticos.
Sempre perto de Peniche – para permitir às crianças visitar os pais quase todos os dias (o que, para os que viviam no Alentejo profundo, só acontecia duas ou três vezes por ano).
A casa do Custódio e da Alice Maldonado Freitas, nas Caldas da Rainha, foi o primeiro espaço cedido para o efeito.
Aí a São Lopes, educadora de infância, e eu própria, aprendiz de muitas coisas, aprendemos com aquelas crianças como se pode conhecer aos dez anos o preço da liberdade.
Muitos deles tinham vivido na clandestinidade, até os pais/mães serem presos.
Nunca diziam alto os seus nomes, protegiam os irmãos mais novos como leões, no princípio não confiavam em nós.
Valiam-nos os camaradas e os amigos, conhecidos de outras lutas, que apareciam muitas vezes e davam às crianças, com a sua presença, a segurança de que precisavam.
Passado o primeiro embate, ficámos cúmplices. Muitas contaram-nos as histórias dolorosas das suas vidas ainda tão curtas. Outras - as mais velhas -
perceberam que nós conhecíamos alguns códigos de sobrevivência e perguntavam-nos antes de agir:
- Aqui podemos cantar o hino de Caxias?
Era o autocarro da carreira colectiva, que ligava as Caldas da Rainha à Foz do Arelho.
- Não! - dizíamos nós, quase em surdina.
A polícia política seguia-nos para todo o lado - e nós, adultas jovens e ignorantes, bem como as crianças (que sabiam muito mais do que nós sobre a luta pelo direito à diferença livre), montávamos jogos para fazer os agentes da PIDE calcorrear quilómetros na areia seca. Polícias barrigudos, vestidos, a pingar suor, e a vociferar impropérios, produziam em nós um gozo fininho. Era um verdadeiro jogo de polícias e Robins dos Bosques.
À tarde, era sempre tempo de visita a alguns dos pais em Peniche. De véspera, os garotos tinham feito, com conchas e algas secas, colagens, pequenos desenhos a três dimensões e alguns objectos decorativos para lhes oferecer.
Os guardas revistavam tudo exaustivamente, não fossem os miúdos passar alguma arma no meio das conchas pintadas.
Faz agora 40 anos que católicos e comunistas se juntaram para, trabalhando em conjunto, aprender a tornar a vida dos outros um bocadinho menos amarga.
Sol 9 de Abril de 2010
Sem comentários:
Enviar um comentário