Comecemos por uma «estória». «Encontrei-o em Londres. Só tinha uma camisa e estava cheio de frio. Vivia num apartamentozinho com dois quartos.» Esta pungente «estória», contada pelo primeiro presidente da CIP, refere-se a Manuel Ricardo Espírito Santo que, passado pouco tempo, no seguimento das nacionalizações e da Reforma Agrária, entendeu fixar-se em Londres.
Pobre como Job, despojado dos seus bens, este herdeiro da poderosa e influente família Espírito Santo, associada ao nepotismo fascista (o avô era visita semanal de Salazar), viu-se obrigado, face à sua situação de pobreza, a pedir um empréstimo a Rockefeller, com o qual monta um pequeno negócio na Suíça, justamente conhecida por ser um dos paraísos fiscais, onde proliferam milagres do tipo da Rainha Santa Isabel, não na transformação do pão em rosas, ludibriando D. Dinis, mas na transformação de dinheiro sujo em «dinheiro limpo», ludibriando as receitas fiscais e estimulando, entre outros, o branqueamento de capitais, os circuitos da droga e o comércio ilegal ligado ao armamento.
Na versão do ex-presidente da CIP não sabemos qual o valor do empréstimo da família Rockefeller,
empréstimo que é de surpreender bastante, na medida em que não é normal os banqueiros emprestarem dinheiro a pobres, salvo se a pobreza tivesse, em 1975, uma tipologia específica, do género: «a pobreza da família Espírito Santo».
Também não sabemos qual o juro imposto pelo Rockefeller, nem qual a taxa de rentabilidade obtida por Manuel Ricardo Espírito Santo nos seus novos negócios.
O que sabemos, isso sim, é que passados 35 anos os interesses económicos da família Espírito Santo estão presentes em mais de 400 empresas, cujos activos, avaliados em cerca de 5% do PIB, superam, em valor, o sector empresarial do nosso País.
Abre-se aqui um parêntesis para esclarecer que, quando o povo português entender efectuar novamente a nacionalização do BES, muitas daquelas empresas serão, reflexamente, nacionalizadas, como aconteceu em 1975, independentemente da sua natureza e dimensão. É fatal como o destino.
Com o aviso aqui feito, avancemos.
O império da família em apreço, disseminado em mais de 20 países, vai da banca ao imobiliário, passando pelo turismo, agropecuária, saúde, defesa, sem esquecer uma das suas especialidades empresariais na área do planeamento fiscal, para bem das grandes fortunas e da fixação de um IRC pigmeu à banca.
Acresce a esta dimensão económica uma outra dimensão através da qual o Grupo Espírito Santo, directamente ou por via das suas empresas associadas, se esforça por estar em todas.
Está no «Processo Furacão», no «Caso Portucale», no «Edifício dos CTT, em Coimbra», no negócio dos submarinos no qual, segundo o Diário de Notícias, foram «identificadas várias empresas do Grupo Espírito Santo pelas quais terá passado o circuito financeiro que está sob investigação (de que se destaca) dos 30 milhões de euros recebidos pela ESCOM, a título de honorários». E tudo isto sem que tivesse havido alguma correlativa actividade que justificasse tal valor.
E que dizer, embora sem consequências, de processos abertos em Espanha, Brasil e EUA?
Por tudo isto, o organograma do Grupo Espírito Santo torna-se, naturalmente, como não podia deixar de ser, muito complexo, dado não apenas a localização das sedes das suas holdings mas igualmente pela teia de cruzamentos de interesses e operações, a exigir enorme perícia de investigação.
A simplicidade das coisas
Mas nem tudo é complexo. Há coisas extremamente simples. Vejamos a simplicidade das coisas.
Em 1975 o Dr. Ricardo Salgado, um modesto emigrante, com apenas uma camisa no corpo, tiritava de frio no seu exíguo apartamento em Londres, não tinha dinheiro, tendo sido obrigado a recorrer aos Rockefeller.
Passados 35 anos o Grupo de que é o máximo responsável está avaliado em cerca de 7 mil milhões de euros.
O que é que isto significa?
Significa que entre Março de 1975 e Março de 2010 o Grupo Espírito Santo acrescentou, vejam bem, caros leitores:
- 7 000 000 000 de euros em 35 anos (é difícil de ler, não é ?);
- 200 000 000 de euros por cada ano civil;
- 16 666 666 de euros por cada mês;
- 555 555 de euros por cada dia, incluindo sábados, domingos e feriados laicos e religiosos;
- 23 148 euros por hora, considerando que cada dia tem 24 horas.
Donde veio tudo isto?
Por mérito próprio, dirão alguns, sobretudo a elite que orbita em torno dos múltiplos e versáteis negócios do Grupo BES.
Outros dirão que a dimensão da acumulação de capital verificada radica nos juros usurários e no valor obsceno das taxas e serviços bancários, sem esquecer o lucro obtido nos elevadíssimos preços das comunicações impostos aos consumidores pela PT, onde o Grupo BES, com a cumplicidade dos governos PS e PSD, põe e dispõe, não obstante a sua influência no capital social não ir além de 8,6%.
Acrescem a tais tentativas de explicação outras centradas no bloco central de interesses, por via da dança de cadeiras, tendo em conta o numeroso grupo de governantes que antecipadamente e a posteriori estiveram, ou estão, ligados ao Grupo BES, facto que leva vários comentadores a afirmar que o Estado foi capturado pelo poder económico e que o BES não precisa de intermediários porque tem assento directo nos conselhos de ministros.
Outros, ainda, dirão que tal acumulação também é explicada pela sagacidade negocial no plano da diversificação nos negócios, tipificada em sectores com elevada rentabilidade de que se destacam, a título de exemplo, as 15 unidades de saúde espalhadas pelo País e a actividade turística.
A propósito do turismo convém salientar que os Hotéis Tivoli são propriedade do Grupo BES, o mesmo que detendo um valor patrimonial de 7 mil milhões de euros recusa um modesto aumento de 3% a trabalhadores cuja média salarial anda à volta de 600 euros mensais.
Tudo isto são elementos constitutivos que ajudam a explicar que um indivíduo, em 1975, sem cheta, tiritando de frio, confinado a um exíguo apartamento, obrigado a pedir um empréstimo aos Rockefeller, seja hoje o líder de uma família que passados 35 anos dispõe de um grupo económico superior ao sector empresarial do Estado.
A questão que se coloca, embora não negligenciável:
- não é tanto saber a dimensão e a rapidez de tal acumulação;
- nem, no plano dos negócios, saber da ética ou da falta dela;
- nem, tão pouco, tipificar o envolvimento em processos de natureza judicial.
A questão é outra. Está a montante.
É a natureza do sistema que permite tal acumulação, qualquer que seja o método e o seu valor.
- Jornal Público de 8 de Março de 2010;
- Jornal de Negócios, de 11 de Março de 2010.
Este texto foi publicado no Avante nº 1.898 de 15 de Abril de 2010.
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