O coro escandalizado e escarnecedor perante esta dupla de adjectivos merece ainda alguma reflexão. Ele exprime a convicção de que não é concebível um patriotismo de esquerda, ou de que um revolucionário não pode assumir-se como sendo uma coisa e outra. «O patriotismo é necessariamente de direita». «Ser patriótico e de esquerda é uma contradição lógica». Estas proposições surgem como tomadas de posição a priori, que ignoram os modos como as palavras ganham ou perdem sentidos no discurso e poupam em excesso na análise da situação concreta em que são ditas.
A candidatura de Francisco Lopes apresenta-se como uma candidatura patriótica e de esquerda. O sentido da palavra «patriótico» é determinado pela dupla de adjectivos em que está inserida, ou seja é determinado pelo facto de ser também «de esquerda». Que consequências é que isso tem quanto ao sentido da palavra? Se existe tal coisa, o que é um patriotismo de esquerda?
É um patriotismo que não se ergue contra outras pátrias (não é uma forma de nacionalismo) e que tem uma raiz de classe; que representa um povo (e o seu núcleo duro, a sua classe operária) contra um duplo inimigo: (1) os «mercados financeiros, sem pátria» (o grande capital transnacional) e (2) o grande capital «nacional» (igualmente sem pátria). Esse movimento (um patriotismo ergue-se contra) traduz uma contradição real numa palavra de ordem que exprime a dialéctica da situação concreta, na sua contraditoriedade. Em situações como a portuguesa, a classe operária, no processo da sua emancipação, terá sempre que estruturar como seus aliados largas camadas de outros trabalhadores assalariados, empregados dos serviços, quadros intelectuais, técnicos e científicos, pequenos patrões e agricultores que formam, no seu conjunto, uma unidade concreta, o povo trabalhador de Portugal, o povo português.
A classe operária defronta um inimigo que tem uma dupla face (internacional e nacional). Dito de outro modo: A classe operária portuguesa, os trabalhadores, os camponeses, a pequena burguesia urbana, franjas das camadas médias defrontam um inimigo sem pátria ou realmente apátrida, mas fundido com determinados estados. Simplesmente esse inimigo tem os seus delegados, representantes ou gestores no nosso país: os grupos económicos portugueses. Por sua vez, estes grupos e a burocracia política que gere os seus negócios no marco nacional e no marco, nomeadamente, da UE, têm usado e usam cada perda de soberania como uma conquista sua e mais um passo na opressão e na sobre-exploração dos assalariados portugueses.
No mundo contemporâneo, com a mundialização capitalista, a competição inter-imperialista e a actual crise sistémica do capitalismo, a submissão nacional é um instrumento de exploração e uma arma de opressão de classe. Não o perceber, não o querer ver é manter uma secreta esperança de que o capitalismo seja inapelavelmente o futuro e em alguns casos confundir o cosmopolitismo (próprio dos quadros da produção simbólica) com o internacionalismo proletário.
Francisco Lopes assumiu a sua candidatura como a candidatura do PCP. O PCP define-se como um partido patriótico e internacionalista. «O Partido Comunista Português considera indissociáveis as suas tarefas nacionais e os seus deveres internacionalistas». Isto é o enunciado de uma regra de conduta que resulta da sua experiência histórica. Por exemplo, em 1956, no seu V Congresso, o PCP tornou-se na primeira e, durante anos, a única força política a reconhecer o direito à auto-determinação e à independência dos povos submetidos ao colonialismo português; e longamente apoiou politica e tecnicamente os movimentos de libertação nacional e os seus dirigentes, assim como lutou directamente contra o aparelho militar colonial. Entretanto e ao mesmo tempo, definia como um dos objectivos da Revolução Democrática e Nacional o alcançar «uma pátria independente e soberana». O seu dever internacionalista estava assim indissociavelmente ligado a uma tarefa nacional, em tempos em que essa indissociação era motivo de anátemas e calúnias, de perseguição, ameaça de tortura e risco de vida.
Admitireis que, sem arrogância, os comunistas tenham orgulho nessa posição política que só vos parece merecer escândalo e chufas escarninhas.
E reparem, não é uma posição que derive de uma experiência exclusivamente portuguesa, antes corresponde a uma experiência histórica mais geral, que vai caracterizar a experiência social do imperialismo, do desenvolvimento irregular do capitalismo, e do surgimento do movimento de libertação nacional.
Venhamos então a essas frases do Manifesto Comunista que, de tão luminosas, acabam por encandear. Em dois momentos a questão do marco nacional de luta é directamente colocada.
«Pela forma, embora não pelo conteúdo, a luta do proletariado contra a burguesia começa por ser uma luta nacional. O proletariado de cada um dos países tem naturalmente de começar por resolver os problemas com a sua própria burguesia […]
Aos comunistas tem além disso sido censurado que querem abolir a pátria, a nacionalidade.
Os operários não têm pátria, não se lhes pode tirar o que não têm. Na medida em que o proletariado tem primeiro de conquistar para si a dominação política, de se elevar a classe nacional * (* na edição de 1888: a classe dirigente da nação), de se constituir a si próprio como nação, ele próprio é ainda nacional, mas de modo nenhum no sentido da burguesia.»
Será que a evolução do sistema capitalista tornou obsoletas estas formulações de Marx? O ónus da prova fica com aqueles que parecem não entender o carácter incoativo desta 1ª fase da luta, com aqueles que não querem ver no sentido de nacional, assim como no de pátria, ou democracia, um combate entre classes.
Por: Manuel Gusmão, Professor da Faculdade de Letras de Lisboa, poeta e ensaísta, membro do Comité Central do Partido Comunista Português
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