Ao receber a cimeira da NATO em Lisboa, daqui a menos de um mês, as autoridades portuguesas dão mais um passo na sua já longa história de submissão a esta estrutura militar do imperialismo, dirigida pelos Estados Unidos da América. Mas a forte resistência que se fará sentir nas ruas, no próximo dia 20, na grande manifestação promovida pela Campanha «Paz Sim! NATO Não!», também tem grande tradição entre nós.
Portugal foi um dos doze países que assinou o Tratado de Washington em 1949 que criou a NATO – Organização do Tratado do Atlântico Norte. Acompanharam-no a Bélgica, o Canadá, a Dinamarca, a França, a Islândia, a Itália, o Luxemburgo, os Países Baixos, a Noruega, o Reino Unido e os Estados Unidos da América.
No referido tratado, a NATO enunciava como objectivo «salvaguardar a liberdade e a segurança de todos os seus membros» e apresentava-se com um âmbito defensivo. Mas só na aparência, pois a NATO apontava o seu fogo à União Soviética (cujo prestígio no mundo era imparável por ter sido a grande responsável pela vitória sobre o nazifascismo na II Guerra Mundial), aos movimentos de libertação e à independência nacional.
Apresentando-se como a organização militar daquilo a que chamavam o mundo livre, era a própria composição da NATO a desautorizar esta afirmação: entre os seus membros estavam Portugal fascista e colonialista e potências coloniais como o Reino Unido, a França, a Bélgica ou os Países Baixos. Poucos anos depois aderiram a Grécia e a Turquia e, em 1955, a República Federal da Alemanha, por cujos corredores do poder andava gente com forte ligação ao nazismo.
A NATO permitiu ao regime fascista sobreviver. Isolado em sequência da derrota dos seus aliados ideológicos, a Itália de Mussolini e a Alemanha de Hitler, o salazarismo encontrou na Inglaterra, nos Estados Unidos e na NATO os seus novos sequazes, oferecendo as suas posições geográficas estratégicas no Atlântico Norte, no Atlântico Sul e no Índico. A presença norte-americana nas Lajes, que ainda hoje se mantém, foi oficializada em 1948. Salazar buscava também o apoio da NATO em caso de guerras coloniais.
Foi o próprio Franco Nogueira, antigo ministro dos Negócios Estrangeiros de Salazar, a reconhecer que os EUA se encontravam numa «posição difícil, porque os seus mais importantes aliados e únicos com quem verdadeiramente poderiam contar eram os países colonizadores que, entretanto, se tornaram as primeiras vítimas do anticolonialismo». Pouco mais de uma década depois da criação da NATO, estalam as guerras em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau, que custaram mais de nove mil mortos portugueses e 100 mil entre a população africana. Do lado do colonialismo português, estas guerras foram travadas com armas da NATO.
Revolução e contra-revolução
Com a Revolução de Abril, alterou-se profundamente a relação entre Portugal e a NATO. Demonstrando toda a hostilidade para com o processo revolucionário, a NATO recorreu a manifestações de força com as manobras Locked Gate realizadas na costa portuguesa no início de 1975 – com a memória da sua participação na invasão turca da parte Norte de Chipre, no ano anterior, ainda bem viva na memória…
O 25 de Novembro e o consequente afastamento dos sectores de esquerda das Forças Armadas, marcam o regresso em força da Aliança Atlântica ao País. Apesar disso, e por força da intensa movimentação de massas que se fazia sentir, é aprovada em 1976 a Constituição da República Portuguesa que, no seu artigo 7.º, prevê a «abolição do imperialismo, do colonialismo e de quaisquer outras formas de agressão, domínio e exploração nas relações entre os povos, bem como o desarmamento geral, simultâneo e controlado, a dissolução dos blocos político-militares». Tal como noutros artigos, que preconizam outros tantos avanços históricos nos planos económico, social e cultural, a Lei Fundamental não passou de letra morta.
O avanço da contra-revolução e a destruição de parte considerável das conquistas de Abril foram acompanhados por um crescente enfeudamento do País à NATO, acompanhando a transformação desta organização, sobretudo a partir dos anos 90 do século passado, numa estrutura claramente agressiva com uma jurisdição global auto-conferida. Sucessivos governos portugueses, do PS ou do PSD, com ou sem o CDS-PP, vão acompanhar e suportar todas as operações militares da NATO – como sucede na Bósnia, na Jugoslávia e Kosovo e no Afeganistão – e apoiar com entusiasmo as revisões do seu conceito estratégico em 1999 e, agora, em 2010.
A participação nas operações militares da NATO, a adaptação das Forças Armadas portuguesas aos seus interesses (na qual o fim do Serviço Militar Obrigatório assumiu um papel central) e o aumento dos gastos militares são exemplos concretos desta crescente e vergonhosa submissão.
Objectivos sinistros
Os objectivos da cimeira que a NATO realiza em Portugal este mês, pelo que representam de perigos e ameaças para os povos, merecem o generalizado repúdio popular. Entre eles, contam-se a reformulação do conceito estratégico da NATO, a busca de compromissos para o atoleiro em que se transformou a invasão ao Afeganistão e a instalação de novos sistemas anti-míssil na Europa.
Do novo conceito estratégico conhece-se o conteúdo do documento intitulado Análise e Recomendações do Grupo de Peritos para um Novo Conceito Estratégico da NATO, presidido por Madeleine Albright, Secretária de Estado dos EUA aquando da agressão à Jugoslávia em 1999 – que configura um salto em frente na agressividade do imperialismo.
Previsto está o alargamento do âmbito de acção da NATO a todas as regiões do mundo, ao mesmo tempo que se amplia o leque de pretextos que podem ser invocados para justificar uma intervenção. O aumento das despesas militares, sobretudo dos membros europeus; a continuação da escalada armamentista; a proliferação das bases militares; e a reafirmação da União Europeia como «parceiro central e estratégico» da NATO, estão também incluídos no texto. Defende-se ainda a manutenção e utilização das armas nucleares na doutrina e estratégia da aliança, prevendo-se a instalação de armas nucleares dos EUA no território de outros países membros.
É perante estes objectivos, que há muito conhece mas que manteve à margem dos portugueses, que o Governo se afirma orgulhoso de receber a cimeira, não tendo qualquer palavra de rejeição dos seus objectivos. Antes pelo contrário, as declarações que proferiu foram no sentido de os valorizar. A manifestação do próximo dia 20 em Lisboa é também contra o executivo liderado por José Sócrates e todos quantos apoiam e suportam a NATO.
Manifestação de 20 de Novembro será histórica
Uma luta de décadas
A luta do povo português contra a NATO é tão antiga quanto a própria Aliança Atlântica. Como lembrou Margarida Tengarrinha, numa sessão comemorativa do 60.º aniversário do Conselho Mundial da Paz, realizada em Lisboa em Janeiro deste ano, foi logo em 1950 que surgiu em Portugal a Comissão Nacional para a Defesa da Paz, primeira organização do movimento da paz português.
O principal dos seus objectivos era recolher 100 mil assinaturas para o Apelo de Estocolmo contra as armas nucleares, integrado no poderoso movimento que recolheu, em todo o mundo, 500 milhões de assinaturas – o maior abaixo-assinado de todos os tempos.
Na mesma sessão, Maria da Piedade Morgadinho, da Comissão Central de Controlo do PCP, recordou que na época «eram proibidas manifestações, mas os jovens organizavam-se em brigadas de trabalhadores e estudantes e percorriam as ruas dos centros e bairros operários como fizeram em Lisboa, Porto, Barreiro, Almada, Marinha Grande, Beja, Pias, Grândola e tantas e tantas outras cidades, vilas e aldeias, recolhendo assinaturas para a paz». Em inúmeras paredes, desafiando a proibição fascista, inscreveu-se a palavra Paz.
Muitos pagaram estas ousadias com a prisão, as torturas e, em alguns casos, com a morte. Vários dirigentes do Movimento Nacional Democrático, como Ruy Luís Gomes, Virgínia Moura, José Morgado e Albertino Macedo foram julgados no Tribunal Plenário de Lisboa por terem enviado um telegrama a Salazar protestando contra a utilização do território nacional por forças da NATO1. Mas, como realçou Maria da Piedade Morgadinho, a «luta não esmorecia».
A realização, em Portugal, da primeira conferência interministerial da NATO, em 1952, deu motivos acrescidos ao movimento da Paz. Na obra citada, Margarida Tengarrinha recorda a «acção mais imaginativa e audaciosa» que realizaram – a colocação de dois grandes cartazes no elevador de Santa Justa, em Lisboa, à hora de maior movimento. Num deles lia-se Fora a NATO enquanto o outro apelava Luta pela Paz. Enrolados nos cartazes encontravam-se folhetos com gravuras relativas à paz, que voaram pela Baixa lisboeta.
Em Junho de 1971, realizou-se em Lisboa uma nova reunião do Conselho Ministerial da NATO. Em plena Guerra Colonial, essa reunião constituía uma «verdadeira provocação e um insulto ao povo português», como lembra Jaime Serra2. A Acção Revolucionária Armada (ARA) levou a cabo uma acção que perturbou por completo o efeito público dessa reunião, à qual acorreu em grande número a comunicação social internacional.
Disfarçados com as fardas dos funcionários dos CTT, operacionais da ARA explodiram aquele que era o «centro nevrálgico de todas as comunicações radiotelegráficas e telefónicas», situado a poucas centenas de metros da sede da PIDE. O histórico dirigente do PCP lembra que «Lisboa ficou isolada do resto do País e do mundo, provocando a desorientação e a maior perturbação no seio do governo fascista e entre os seus convidados parceiros da NATO. Por este facto a reunião começou com grande atraso, tendo sido desvalorizada pelos numerosos jornalistas presentes que optaram por dar relevo à acção da ARA». Marcello Caetano terá ficado retido num elevador juntamente com o Secretário de Estado dos EUA em sequência da explosão.
Firmes contra a guerra
Conquistada a liberdade, não foi mais necessário recorrer a acções clandestinas ou armadas. A criação, em 1976, do Conselho Português para a Paz e Cooperação (CPPC), é um momento alto da luta pela paz em Portugal, dando-lhe uma expressão popular, unitária e de massas. Nos anos 80, combateu-se intensamente a instalação de novos e mais potentes mísseis norte-americanos na Europa Ocidental e exigiu-se o fim das armas nucleares.
Em 1999, milhares de portugueses contestaram nas ruas a agressão à Jugoslávia, o que voltaram a fazer dois anos depois, aquando da invasão do Afeganistão. Nos dois casos, fizeram-no enfrentando uma poderosa ofensiva mediática legitimadora das guerras e do novo papel da NATO, à qual não resistiram inclusivamente muitos sectores de esquerda.
Desde que foi conhecida a disponibilidade das autoridades portuguesas para receberem, no País, a cimeira da NATO em 2010 (a mesma que demonstraram para receber a cimeira das Lajes, que determinou a invasão do Iraque pela coligação EUA-Inglaterra-Espanha), que o movimento da paz se mobilizou. Nasceu assim, em Janeiro deste ano, a Campanha «Paz Sim! NATO Não!», em torno de questões essenciais: a manifestação de repúdio pela realização da cimeira da NATO em Portugal; a exigência de retirada das tropas nacionais de missões da NATO; o fim das bases militares estrangeiras e das instalações da NATO no País; a recusa da transformação da União Europeia em pilar europeu da NATO; a exigência do desarmamento, do fim das armas nucleares e de destruição maciça e da dissolução da NATO.
Em torno destas causas, a Campanha rapidamente alargou a sua influência a vários sectores, reunindo actualmente mais de uma centena de organizações nacionais (entre as quais se contam o CPPC, a CGTP-IN e o PCP). Entre as acções realizadas, destaca-se a petição que recolheu 13 mil assinaturas e que foi já debatida na Assembleia da República, obrigando PS, PSD e CDS a assumirem as suas posições em defesa das guerras e ocupações e da corrida aos armamentos.
A manifestação de dia 20 de Novembro, entre o Marquês de Pombal e os Restauradores, em Lisboa, pela sua dimensão e significado, entrará directamente na história da luta pela paz em Portugal.
In:
http://www.avante.pt/